Mas, o que fazer com a infração administrativa que determina o cumprimento das normas legais e regulamentares e o crime de prevaricação? Obviamente que tais infrações não se perfazem em casos como este. Não há qualquer atuação dolosa e nem mesmo culposa atribuível à Autoridade que age com competência em sua função, procurando, ao reverso, cumprir as normas legais e regulamentares em seu máximo alcance. Também, muito menos, há prevaricação, pois a inação momentânea não se dá para satisfação de qualquer interesse ou sentimento pessoal, mas com vistas ao interesse público e à preservação máxima possível dos bens jurídicos em jogo (inteligência do artigo 319, CP).
Assim sendo as previsões da Lei 9.034/95 e da Lei 11.343/06 não são taxativas, inobstante as respeitáveis opiniões em contrário. O necessário é uma avaliação do caso concreto em que se possa detectar justa causa para o protelamento da Prisão em Flagrante com vistas à maior eficácia da atividade repressivo – investigatória.
Neste sentido manifesta-se Silva na doutrina especializada:
"Em que pese o tratamento legal específico para apuração do crime organizado, o emprego da ação controlada visando apurar a prática de conduta que não tenha relação com a criminalidade organizada pode ser resolvido no campo do direito material. Assim é que o agente policial que retarda sua intervenção para aguardar o momento mais adequado para cumprir com seu dever funcional de interromper o crime em curso não age com o dolo específico de ‘satisfação de interesse ou sentimento pessoal’ exigido pelo legislador penal, mas com a finalidade de aguardar o melhor momento para surpreender o autor do delito. E, assim, não pratica crime de prevaricação, por ausência do elemento subjetivo do tipo". [03]
Outro aspecto que se julga importante sobre a chamada "ação controlada" na dicção do artigo 2º., II, da Lei 9034/95 é que naquele diploma não é feita a exigência de prévia ordem judicial para a adoção desse procedimento pela Autoridade Policial. [04] Isso é visível pela falta de menção no dispositivo e pelo fato de que, por exemplo, nos incisos IV e V a lei faz menção expressa à necessidade dessa autorização prévia, demonstrando que não o exige no inciso II. É claro que também não o diz no inciso III, embora nele seja induvidosa a necessidade de ordem judicial para o acesso de dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais. Mas, nesse caso o legislador não precisava mesmo mencionar porque tais quebras de sigilo são reguladas por leis especiais que já exigem a ordem judicial. O inciso IV exige a menção expressa sobre ordem judicial porque a captação ambiental de sinais, sons e imagens não é regulada por outra legislação, nem mesmo na Lei de Interceptações Telefônicas (Lei 9.296/96). Assim também ocorre com a infiltração de agentes, somente prevista na época na própria Lei de combate ao Crime Organizado e hoje prevista também na Lei de Drogas (artigo 53, inciso I, também com exigência de ordem judicial prévia).
A "ação controlada" não era também prevista em outra legislação que exigisse ordem judicial para sua adoção, de modo que ao regulá-la sem essa exigência o legislador dispensou tal ordem. Acontece que posteriormente o mesmo instituto é previsto na Lei de Drogas (Lei 11.343/06, artigo 53, II), onde se determina que haja necessidade de ordem judicial e inclusive prévia oitiva do Ministério Público.
Nessa situação três interpretações podem surgir:
-A Lei 11.343/06 (posterior) teria derrogado a Lei 9034/95 (anterior) [05], passando a haver necessidade de ordem judicial para a ação controlada em qualquer caso, envolvendo drogas ou não;
-Cada diploma legal teria sua aplicação separada, não havendo necessidade de ordem judicial prévia para a apuração de crime organizado, mediante ação controlada dos órgãos policiais, desde que não se verse sobre tráfico de drogas, quando, devido à especialidade, a ordem judicial e oitiva prévia do Ministério Público são impostas por lei. [06]
-Nos casos de crime organizado (Lei 9.034/95) não é necessária ordem judicial prévia, mesmo em se tratando de tráfico de drogas. Apenas será necessária ordem judicial prévia para apurações referentes a tráfico de drogas que não envolvam organização criminosa. [07]
Entende-se que o terceiro posicionamento é o mais correto, mas não é compreensível a razão de tratamento tão desigual. Também não é inteligível a motivação do legislador em condicionar a ação controlada ou o flagrante diferido no caso de drogas à prévia ordem judicial e oitiva ministerial. Isso, de acordo com a experiência, torna essa atividade praticamente inviável. Em primeiro lugar, arrasta o Juiz para uma atuação tipicamente investigatória, o que não é recomendável no sistema acusatório. Além disso, a decisão sobre um retardamento na ação policial é tomada em campo, no momento de ação e deve ser imediata. Não se vislumbra possibilidade prática de que a Autoridade Policial possa representar formalmente e por escrito ao Juiz, aguardando a manifestação ministerial e uma ordem posterior. A formalidade, nesse caso, imiscui-se onde não é chamada, onde é mesmo impraticável. Imagine-se que uma Autoridade Policial depare com um caminhão carregado de cocaína durante investigações e tenha condições de interceptá-lo de imediato, isso em torno das 03 h da manhã. No entanto, sabe que tal caminhão se dirige a um depósito muito maior de drogas e onde estariam homiziados os principais agentes do grupo criminoso. Deveria a Autoridade se contentar em prender imediatamente o mero motorista? Ou então, teria que retornar à Delegacia para elaborar uma representação e protocolar no Fórum, aguardando novas orientações do Judiciário e Ministério Público? Ora, é isso que a lei manda fazer!!! Sinceramente trata-se de algo totalmente apartado da realidade, uma conformação legal produzida claramente por pessoas que não têm qualquer vivência do cotidiano criminal. [08] A ação controlada deveria ser algo muito informal, como o é toda atividade investigatória pré – processual, sob pena de tornar-se impraticável. Deve caber a decisão sobre o protelar do flagrante ou a ação controlada, somente à Autoridade Policial, devendo tudo ser narrado com pormenores nos autos de investigação e posteriormente sim avaliada jurisdicionalmente a correção ou não desse procedimento. Mas, ao menos no caso das drogas, há exigência legal de ordem judicial prévia e de anterior manifestação do Ministério Público. Pensa-se que nesses casos a Autoridade Policial deve agir com base no Direito Material, ciente de que não prevarica nem descumpre deveres funcionais, de modo que sua atuação é lícita e, consequentemente lícitas a provas obtidas, pois que a formalidade torna-se estéril e impraticável, razão pela qual inexigível. Além disso, envolvendo o caso organização criminosa, ainda que referente ao tráfico de drogas, pode-se aplicar os dispositivos especiais da Lei 9.034/95 que dispensam a ordem judicial prévia, conforme entendimento do STJ.
Por derradeiro é importante lembrar que também a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/98), prevê uma espécie de "ação controlada" no seu artigo 4º., § 4º., que assim dispõe:
"A ordem de prisão de pessoas ou da apreensão ou sequestro de bens, direitos ou valores, poderá ser suspensa pelo juiz, ouvido o Ministério Público, quando a sua execução imediata possa comprometer as investigações".
Certamente, como vislumbra Mendonça [09], esse dispositivo pode abranger mais uma modalidade de "flagrante retardado". No entanto, é preciso notar que o instituto ali desenvolvido é muito mais abrangente, referindo-se também a prisões por ordem judicial (v.g. temporárias ou preventivas) e a outras cautelares reais, tais como apreensões e sequestros de bens, direitos e valores. Por isso a deliberação neste texto de tratamento apartado dessa espécie de "ação controlada".
A Lei 9613/98 também prevê necessidade de prévia ordem judicial e oitiva do Ministério Público para a realização dessas espécies de ações controladas. Não se discute a oportunidade e conveniência da ordem judicial como pré – requisito nos casos de prisões derivadas de mandados de prisão judiciais, bem como ordens judiciais de apreensão ou sequestro. Ora, sem uma prévia determinação judicial não caberia a qualquer Autoridade postergar, seja por que motivo for uma determinação oriunda do Judiciário. Por isso imprescindível realmente a ordem prévia para tanto. No que tange à Prisão em Flagrante, que parece de menor incidência nos casos de Lavagem de Dinheiro, valem os comentários anteriormente despendidos, com fulcro na Lei de combate ao Crime Organizado e no Direito Material, a afastarem, em certos casos a necessidade de ordem judicial prévia. Também releva destacar que essa ação controlada prevista na Lei 9.613/98 é passível de utilização em quaisquer casos de lavagem de dinheiro e não somente naqueles que envolvam organizações criminosas, pois que se trata de uma estratégia por demais útil nessa espécie de investigação, permitindo uma atuação mais adequada e no momento mais propício. Conforme bem destacam Márcia Monassi Mougenot Bonfim e Edílson Mougenot Bonfim em obra especializada:
"A detenção de um ‘operário’ ou ‘avião’ de uma organização criminosa, por exemplo, pode causar mais prejuízos do que benefícios à investigação. Melhor retardar a diligência e agir em momento mais oportuno, depois de identificar os demais envolvidos ou após apurar a origem delitiva de outros bens ou valores". [10]
Percebe-se que a ação controlada é um instrumento altamente útil na investigação referente à denominada "macrocriminalidade", embora seu tratamento legal deixe um pouco a desejar, sendo necessário seu complemento por aplicação cuidadosa da razoabilidade e do bom senso, para além dos regramentos formais (processuais) da matéria. É preciso atentar para a instrumentalidade das formas e, especialmente, para o Direito Material envolvido, que afasta infrações administrativas e/ou penais quando a Autoridade Policial atua com o fito de buscar a melhor apuração possível dos fatos, agindo de forma inteligente e emprestando o maior grau de proteção possível aos bens jurídicos em jogo, bem como dando o máximo de eficácia às normas legais envolvidas.
A personagem Sabina criada por Kundera em seu romance é uma pintora que produz quadros onde predomina em um plano frontal um estilo realista, mas deixando sempre ao fundo alguma imagem misteriosa ou abstrata. Nas palavras da personagem: "Na frente estava a mentira inteligível, e atrás a incompreensível verdade".[11]
Por vezes também o legislador age como Sabina: apresenta-nos a lei concreta, palpável, ideal e clara, coloca-a à nossa frente, deixando bem ao fundo em pinceladas tênues, quase imperceptíveis a realidade do mundo da vida, a qual precisamos perscrutar com sensibilidade para além da mera exegese confortável e fácil, desvelando uma verdade que nesse nível primário (pura exegese) seria inalcançável, incompreensível mesmo. Mas, sem acesso à qual jamais se poderia distinguir entre normatividade e factibilidade.
REFERÊNCIAS
BONFIM, Edílson Mougenot. Reforma do Código de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2011.
BONFIM, Márcia Monassi Mougenot, BONFIM, Edílson Mougenot. Lavagem de Dinheiro. 2ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
ESPÍNOLA, Eduardo, ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Volume 1. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
GOMES, Luiz Flávio (coord.). Nova Lei de Drogas comentada. São Paulo: RT, 2006.
KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Trad. Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
MARCÃO, Renato. Prisões Cautelares, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Restritivas. São Paulo: Saraiva, 2011.
MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
MUCCIO, Hidejalma. Curso de Processo Penal. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
SILVA, Eduardo Araújo. Crime Organizado. São Paulo: Atlas, 2003.
Notas
- Esse tem sido o entendimento em geral. Discorda do pensamento predominante Marcão, afirmando que a hipótese da Lei 11.343/06 não trataria de flagrante protelado, mas de ação controlada diversa daquela prevista na Lei 9.034/95, esta sim criadora do flagrante postergado. Cf. MARCÃO, Renato. Prisões Cautelares, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Restritivas. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 82 – 83. Entende-se que o pensamento predominante está com a razão no caso específico, pois que não se enxerga diferença de natureza entre os dispositivos correlatos da Lei de Drogas e da Lei de Combate ao Crime Organizado. No sentido predominante: BONFIM, Edílson Mougenot. Reforma do Código de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 70. MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2011., p. 168.
- Neste sentido Muccio, trazendo ainda as lições de Fernando Capez e Luiz Flávio Gomes. MUCCIO, Hidejalma. Curso de Processo Penal. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011., p. 1.131 – 1132. Ver também no mesmo sentido: MARCÃO, Renato. Op. Cit. , p. 82.
- SILVA, Eduardo Araújo. Crime Organizado. São Paulo: Atlas, 2003, p. 93 – 94.
- Cf. SILVA, Eduardo Araújo. Op. Cit., p. 94. Também assim se posiciona Mendonça: MENDONÇA, Andrey Borges de. Op. Cit., p. 168. O autor arrola inclusive "decisum" do STJ a respeito: "Organização criminosa. Ação policial controlada. Artigo 2º., inciso II, da Lei 9.034/95. Prévia autorização judicial. Ausência de previsão legal. Constrangimento ilegal não evidenciado. Ordem denegada. 1. Da mesma forma, à míngua de previsão legal, não há como reputar nulo o procedimento investigatório levado a cabo na hipótese em apreço, tendo em vista que o artigo 2º., inciso II, da Lei 9.034/95 não exige prévia autorização judicial para a realização da chamada ‘ação policial controlada’, a qual in casu, culminou na apreensão de cerca de 450 kg (quatrocentos e cinquenta quilos) de cocaína. 2. Ademais, não há falar-se na possibilidade dos agentes policiais virem a incidir na prática do crime de prevaricação, pois o ordenamento jurídico não pode proibir aquilo que ordena e incentiva. 3. Ordem denegada. (HC 119.205/MS, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª. Turma, julgado em 29.09.2009, DJe de 16.11.2009)". Observe-se que o julgado do STJ permite a ação controlada independentemente de ordem judicial, mesmo em caso de tráfico de drogas, desde que envolvendo organização criminosa.
- Seria caso de revogação tácita em que a lei posterior é incompatível com a lei anterior, o que não parece razoável, já que cada diploma pode ter sua área de aplicação própria. Conforme lecionam Espínola e Espínola Filho, a revogação da lei anterior pela posterior somente se dá por incompatibilidade "absoluta", de modo que as duas normas não possam conviver harmonicamente no mesmo ordenamento jurídico. Sendo "duvidosa a incompatibilidade", impõe-se uma interpretação capaz de conjugar ambas as normas, fazendo "desaparecer a antinomia". Ademais, alertam os autores que, conforme escólio de Stolfi "nem sempre a lei especial derroga a geral, podendo perfeitamente acontecer que introduza, a lei especial, uma exceção ao princípio geral, que deve coexistir ao lado deste". Pode-se dizer que "a lei especial só revoga a geral, quando a ela se referir, ou ao seu assunto, e exclusivamente no ponto em que a altera ou a exclui explicitamente ou implicitamente, o que, aliás, é o caso mais freqüente". ESPÍNOLA, Eduardo, ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Volume 1. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 63 – 70. Observe-se que atualmente a antiga "Lei de Introdução ao Código Civil" passou a denominar-se "Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro", por força da Lei 12.376/10. Anote-se ainda que no caso enfocado a lei posterior, ainda que considerada especial não toca no tema de revogação da Lei 9.034/95 e pode perfeitamente coexistir com esta, aplicando-se tão somente aos casos de tráfico de drogas, inclusive somente àqueles que não envolvam organização criminosa. Não há, em suma, incompatibilidade absoluta entre as normas em referência.
- SILVA, Eduardo Araújo da. Op. Cit., p. 94.
- Vide teor da decisão do STJ em nota de rodapé anterior, referente ao HC 119.205/MS.
- Inobstante isso, a adoção da ordem judicial e oitiva prévia do Ministério Público têm sido aplaudidas como inovações corretas da Lei 11.343/06 em relação à Lei 9034/95. Ver por todos: GOMES, Luiz Flávio (coord.).Nova Lei de Drogas comentada. São Paulo: RT, 2006, p. 230. Entende-se que falta, nesse passo, uma maior reflexão prática sobre o tema. Além disso, há a menção à legislação estrangeira como um dos argumentos favoráveis à prévia ordem judicial ou mesmo ministerial, olvidando-se as diferenças enormes entre a organização judicial, ministerial e policial brasileira e a de outros países em que, por exemplo, Ministério Público e Polícia ou o Juízo de Instrução e a Polícia atuam praticamente em conjunto harmônico, constituindo quase que uma mesma instituição. Isso nada tem a ver com a realidade brasileira!
- MENDONÇA, Andrey Borges de. Op. Cit., p. 168.
- Lavagem de Dinheiro. 2ª. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 78.
- KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. Trad. Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 65
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