´POLÍCIA FERROVIÁRIA FEDERAL

´POLÍCIA FERROVIÁRIA FEDERAL
Desfile
Powered By Blogger

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Lei de Anistia, Direito à Verdade e à Justiça: o Caso Brasileiro




Como enfrentar as graves violações de direitos humanos perpetradas no passado? Como ritualizar a passagem de um regime militar ditatorial a um regime democrático? Como interpretar a lei de anistia de 1979 à luz dos parâmetros protetivos internacionais? Como assegurar a proteção dos direitos à verdade e à justiça? Quais são os principais desafios e perspectivas da justiça de transição no contexto brasileiro?
São essas as questões centrais a inspirar este artigo, que tem como objetivo maior enfocar a lei de anistia brasileira, o direito à verdade e o direito à justiça no marco da justiça de transição sul-americana, considerando o especial impacto do sistema interamericano. Sob esta perspectiva, emerge o desafio de assegurar o fortalecimento do Estado de Direito, da democracia e dos direitos humanos, aliando a luta por justiça e paz na experiência brasileira.
Impacto do sistema interamericano
Dois períodos demarcam o contexto latino-americano: o período dos regimes ditatoriais e o período da transição política aos regimes democráticos, marcado pelo fim das ditaduras militares na década de 1980 na Argentina, no Chile, no Uruguai e no Brasil.
Em 1978, quando a Convenção Americana de Direitos Humanos entrou em vigor, muitos dos Estados da América Central e do Sul eram governados por ditaduras. Dos 11 Estados-partes da Convenção à época, menos que a metade tinha governos eleitos democraticamente, ao passo que hoje quase a totalidade dos Estados latino-americanos na região tem governos eleitos democraticamente . Diversamente do sistema regional europeu que teve como fonte inspiradora a tríade indissociável Estado de Direito, Democracia e Direitos Humanos , o sistema regional interamericano tem em sua origem o paradoxo de nascer em um ambiente acentuadamente autoritário, que não permitia qualquer associação direta e imediata entre Democracia, Estado de Direito e Direitos Humanos. Ademais, neste contexto, os direitos humanos eram tradicionalmente concebidos como uma agenda contra o Estado. Diversamente do sistema europeu, que surge como fruto do processo de integração europeia e tem servido como relevante instrumento para fortalecer este processo de integração, no caso interamericano havia tão somente um movimento ainda embrionário de integração regional.
A região latino-americana tem sido caracterizada por elevado grau de exclusão e desigualdade social ao qual se somam democracias em fase de consolidação. A região ainda convive com as reminiscências do legado dos regimes autoritários ditatoriais, com uma cultura de violência e de impunidade, com a baixa densidade de Estados de Direitos e com a precária tradição de respeito aos direitos humanos no âmbito doméstico. A América Latina tem o mais alto índice de desigualdade do mundo, no campo da distribuição de renda . No que se refere à densidade democrática, segundo a pesquisa Latinobarômetro, no Brasil apenas 47% da população reconhece ser a democracia o regime preferível de governo; ao passo que no Peru este universo é ainda menor, correspondendo a 45% e, no México, a 43% .
É neste cenário que o sistema interamericano se legitima como importante e eficaz instrumento para a proteção dos direitos humanos, quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas. Com a atuação da sociedade civil, a partir de articuladas e competentes estratégias de litigância, o sistema interamericano tem a força catalizadora de promover avanços no regime de direitos humanos. Permitiu a desestabilização dos regimes ditatoriais; exigiu justiça e o fim da impunidade nas transições democráticas; e, agora, demanda o fortalecimento das instituições democráticas com o necessário combate às violações de direitos humanos e a proteção aos grupos mais vulneráveis. 
Considerando a atuação da Corte Interamericana no processo de justiça de transição no contexto sul-americano, destaca-se, como caso emblemático, o caso Barrios Altos versusPeru – massacre que envolveu a execução de 14 pessoas por agentes policiais. Em virtude da promulgação e da aplicação de leis de anistia (uma que concede anistia geral aos militares, policiais e civis, e outra que dispõe sobre a interpretação e alcance da anistia), o Peru foi condenado a reabrir investigações judiciais sobre os fatos em questão, relativos ao “massacre de Barrios Altos”, de forma a derrogar ou a tornar sem efeito as leis de anistia mencionadas. O Peru foi condenado, ainda, à reparação integral e adequada dos danos materiais e morais sofridos pelos familiares das vítimas .
A Corte Interamericana realçou que, ao estabelecer excludentes de responsabilidade e impedir investigações e punições de violações de direitos humanos como tortura, execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados, leis de anistia são incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos. No entender da Corte: “La Corte, conforme a lo alegado por la Comisión y no controvertido por el Estado, considera que las leyes de amnistía adoptadas por el Perú impidieron que los familiares de las víctimas y las víctimas sobrevivientes en el presente caso fueran oídas por un juez, conforme a lo señalado en el artículo 8.1 de la Convención; violaron el derecho a la protección judicial consagrado en el artículo 25 de la Convención; impidieron la investigación, persecución, captura, enjuiciamiento y sanción de los responsables de los hechos ocurridos en Barrios Altos, incumpliendo el artículo 1.1 de la Convención, y obstruyeron el esclarecimiento de los hechos del caso.  Finalmente, la adopción de las leyes de autoamnistía incompatibles con la Convención incumplió la obligación de adecuar el derecho interno consagrado en el artículo 2 de la misma”.
Conclui a Corte que as leis de “autoanistia” perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o que constituiria uma manifesta afronta à Convenção Americana. As leis de anistiam configurariam, assim, um ilícito internacional e sua revogação uma forma de reparação não pecuniária.
Esta decisão apresentou um elevado impacto na anulação de leis de anistia e na consolidação do direito à verdade, pelo qual os familiares das vítimas e a sociedade como um todo devem ser informados das violações, realçando o dever do Estado de investigar, processar, punir e reparar violações aos direitos humanos. Foi a primeira vez, no Direito Internacional contemporâneo, que um Tribunal internacional determinou que leis de anistia eram incompatíveis com tratados de direitos humanos, carecendo de efeitos jurídicos.
No mesmo sentido, destaca-se o caso Almonacid Arellano versus Chile cujo objeto era a validade do decreto-lei 2191/78 – que perdoava os crimes cometidos entre 1973 e 1978 durante o regime Pinochet – à luz das obrigações decorrentes da Convenção Americana de Direitos Humanos. Para a Corte Interamericana: “La adopción y aplicación de leyes que otorgan amnistía por crímenes de lesa humanidad impide el cumplimiento de las obligaciones señaladas. El Secretario General de las Naciones Unidas, en su informe sobre el establecimiento del Tribunal Especial para Sierra Leona, afirmó que [a]unque reconocen que la amnistía es un concepto jurídico aceptado y una muestra de paz y reconciliación al final de una guerra civil o de un conflicto armado interno, las Naciones Unidas mantienen sistemáticamente la posición de que la amnistía no puede concederse respecto de crímenes internacionales como el genocidio, los crímenes de lesa humanidad o las infracciones graves del derecho internacional humanitário. (…) Leyes de amnistía con las características descritas conducen a la indefensión de las víctimas y a la perpetuación de la impunidad de los crímenes de lesa humanidad, por lo que son manifiestamente incompatibles con la letra y el espíritu de la Convención Americana e indudablemente afectan derechos consagrados en ella. Ello constituye per se una violación de la Convención y genera responsabilidad.” Acrescenta a Corte: “En consecuencia, dada su naturaleza, el Decreto Ley N. 2.191/78 carece de efectos jurídicos y no puede seguir representando un obstáculo para la investigación de los hechos que constituyen este caso, ni para la identificación y el castigo de los responsables, ni puede tener igual o similar impacto respecto de otros casos de violación de los derechos consagrados en la Convención Americana acontecidos en Chile”.
Por fim, por unanimidade, concluiu a Corte pela invalidade do mencionado decreto lei de “autoanistia”, por implicar denegação de justiça às vítimas, bem como por afrontar os deveres do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violações de direitos humanos que constituem crimes de lesa humanidade.
Em direção similar, adicione-se o caso La Cantuta versus Peru , referente à execução sumária de um professor e nove estudantes da Universidade de La Cantuta, em 1992, perpetrada por um “esquadrão da morte” denominado “Grupo Colina”, também responsável pelo assassinato de 14 vítimas no caso Barrios Altos, em 1991. Neste caso, sustentou a Corte Interamericana que “o aparto estatal foi indevidamente utilizado para cometer crimes de Estado, constituindo inadmissível violação ao jus cogens, para, depois, encobrir tais crimes e manter seus agentes impunes. (…) O jus cogens resiste aos crimes de Estado, impondo-lhe sanções.”
Ressalte-se que, à luz dos parâmetros protetivos mínimos estabelecidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos, destacam-se quatro direitos: o direito a não ser submetido à tortura; o direito à justiça (o direito à proteção judicial); o direito à verdade; e o direito à prestação jurisdicional efetiva, na hipótese de violação a direitos (direito a remédios efetivos).
Os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos estabelecem um núcleo inderrogável de direitos, a serem respeitados seja em tempos de guerra, instabilidade, comoção pública ou calamidade pública, como atestam o artigo 4º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o artigo 27 da Convenção Americana de Direitos Humanos e o artigo 15 da Convenção Europeia de Direitos Humanos .  A Convenção contra a Tortura, de igual modo, no artigo 2o, consagra a cláusula da inderrogabilidade da proibição da tortura, ou seja, nada pode justificar a prática da tortura (seja ameaça ou estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública). Todos estes tratados convergem ao endossar a absoluta proibição da tortura. Isto é, o direito a não ser submetido à tortura é um direito absoluto, que não permite qualquer exceção, suspensão ou derrogação.
A racionalidade adotada pela Corte Interamericana é clara: a) as leis de anistia violam parâmetros protetivos internacionais; b) constituem um ilícito internacional; e c) não obstam o dever do Estado de investigar, julgar e reparar as graves violações cometidas, assegurando às vítimas os direitos à justiça e à verdade.
Note-se que, no sistema global de proteção, cabe menção à Recomendação Geral n. 20, de abril de 1992, adotada pelo Comitê de Direitos Humanos, a respeito do artigo 7º do Pacto de Direitos Civis e Políticos, concernente à proibição da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, que ressalta: “As anistias são geralmente incompatíveis com o dever dos Estados de investigar tais atos; para garantir a não ocorrência de tais atos dentro de sua jurisdição; e para assegurar que não ocorram no futuro. Os Estados não podem privar os indivíduos de seu direito a um recurso eficaz, inclusive a possibilidade de compensação e plena reabilitação.”
No mesmo sentido, destaca-se a Recomendação Geral n. 31, adotada pelo Comitê de Direitos Humanos, em 2004, ao afirmar: “O artigo 2, parágrafo 3, requer que os Estados partes proporcionem a reparação aos indivíduos cujos direitos do Pacto forem violados. Sem reparação aos indivíduos cujo direito foi violado, a obrigação de fornecer um recurso eficaz, que é central à eficácia do artigo 2, parágrafo 3, não é preenchida. (…) O Comitê ressalta que, quando apropriada, a reparação deve abranger a restituição, a reabilitação e as medidas da satisfação, tais como pedidos de desculpas em público, monumentos públicos, garantia de não repetição e mudanças em leis e em práticas relevantes, assim como conduzir à justiça os agentes de violações dos direitos humanos. (…) Os Estados partes devem assegurar que os responsáveis por violações de direitos determinados no Pacto, quando as investigações assim revelarem, sejam conduzidos aos tribunais. Como fracasso na investigação, o fracasso em trazer os agentes violadores à justiça poderia causar uma ruptura do Pacto. (…) Dessa forma, onde os agentes públicos ou estatais cometeram violações dos direitos do Pacto, os Estados partes envolvidos não podem aliviar os agressores da responsabilidade pessoal, como ocorreram com determinadas anistias e as imunidades e indenizações legais prévias. Além disso, nenhuma posição oficial justifica que pessoas que poderiam ser acusadas pela responsabilidade por tais violações permaneçam imunes de sua responsabilidade legal. Outros impedimentos à determinação da responsabilidade legal também devem ser removidos, como a defesa por devido cumprimento do dever legal ou aos períodos absurdamente curtos da limitação estatutária nos casos onde tais limitações são aplicáveis. Os Estados partes devem também ajudar a conduzir à justiça os suspeitos de cometimento de atos de violação ao Pacto, os quais são puníveis sob a legislação doméstica ou internacional” .
Proteção dos Direitos à Justiça
e à Verdade
A análise da experiência sul-americana quanto à proteção dos direitos à justiça e à verdade no marco da transitional justice será concentrada no estudo de casos envolvendo a experiência da Argentina e do Brasil. Três são os fatores a justificar este critério seletivo:
a) ambos países transitaram de regimes autoritários ditatoriais para regimes democráticos, adotando leis de anistia – no caso argentino, as leis de ponto final (Lei n.23.492/86) e obediência devida (Lei n.23.521/87); no caso brasileiro, a lei n.6683/79;
b) adotaram novos marcos normativos (a reforma de 1994 na Constituição Argentina e a Constituição Brasileira de 1988); e
c) conferem aos tratados de direitos humanos um status privilegiado na ordem jurídica (nos termos do artigo 75, inciso 22 da Constituição Argentina e do artigo 5º, parágrafos 2º e 3º da Constituição Brasileira).
Nesta análise comparativa, o foco será avaliar:
a) a incorporação da jurisprudência da Corte Interamericana por decisões judiciais relativas às leis de anistia ;
b) o alcance de proteção dos direitos à justiça e à verdade nas experiências da Argentina e do Brasil.
Argentina
A ditadura na Argentina estendeu-se pelo período de 1976 a 1983. Estima-se que houve o desaparecimento forçado de 18 mil pessoas (dados oficiais da Secretaria de Direitos Humanos) a 30 mil pessoas (de acordo com estimativas de organizações não governamentais, como Las Madres de la Plaza de Mayo).
Quanto ao direito à justiça, decisão da Corte Suprema de Justiça de 2005 no caso Simón, Héctor e outros anulou as leis de ponto final (Lei 23.492/86) e obediência devida (Lei 23.521/87) – ambas obstavam o julgamento das violações ocorridas de 1976 a 1983, durante a “guerra suja” – adotando como precedente o caso Barrios Altos. A jurisprudência desenvolvida pela Corte Suprema de Justiça Argentina expressamente reconhece que: “a jurisprudência da Corte Interamericana deve servir de guia para a interpretação dos preceitos convencionais, sendo uma imprescindível diretriz de interpretação dos deveres e das obrigações decorrentes da Convenção Americana” .
No caso Mazzeo, Julio Lilo e outro, decidido em 2007, a Corte Suprema Argentina invalidou decreto adotado pelo presidente Menen em 1989, que concedeu indulto a 30 ex-militares acusados de crimes de lesa humanidade, amparando-se na jurisprudência da Corte Interamericana, em especial nos casos Velásquez Rodrigues e Barrios Altos.
Quanto ao direito à verdade, em 6 de janeiro de 2010, a presidente da Argentina determinou a abertura dos arquivos confidenciais referentes à atuação das Forças Armadas na ditadura militar no país, no período de 1976 a 1983. O fundamento do decreto é que “a atuação das Forças Armadas durante a vigência do terrorismo de Estado demonstra que a informação e a documentação classificadas como confidenciais não estiveram destinadas à proteção dos interesses legítimos próprios de um Estado Democrático, mas, ao contrário, serviram para ocultar a ação ilegal do governo. Manter o sigilo dos documentos é contrário à política da memória, verdade e justiça”. Observe-se que o Decreto destaca expressamente, em seus considerandos, o caso Simón, Julio Héctor e outros, que determinou a reabertura de causas de violações de direitos humanos durante o “terrorismo de Estado”, demandando uma grande quantidade de informação e documentação sobre a atuação das Forças Armadas. Adiciona que, limitar o acesso à informação e à documentação, de forma a impedir uma investigação completa e o esclarecimento de fatos, com o julgamento e a sanção dos responsáveis, seria atentar às obrigações assumidas pelo Estado Argentino no plano do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
À luz da experiência argentina, conclui-se que há: a) a plena incorporação da jurisprudência da Corte Interamericana e dos parâmetros protetivos internacionais pela Corte Suprema Argentina; b) uma explícita e firme política de Estado em prol da memória, verdade e justiça; e c) a devida proteção dos direitos à verdade e à justiça.
Brasil
A ditadura no Brasil estendeu-se pelo período de 1964 a 1985. Estima-se que houve o desaparecimento forçado de 150 pessoas, o assassinato de 100 pessoas, ao que se soma a denúncia de mais de 30 mil casos de tortura.
Quanto ao direito à justiça, decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.153, em 29 de abril de 2010, manteve a interpretação de que a lei de anistia de 1979 (Lei n. 6683/79) teria assegurado anistia ampla, geral e irrestrita, alcançando tanto as vítimas como os algozes. O argumento central é que a lei de anistia teria sido expressão de um acordo político, de uma conciliação nacional, envolvendo “diversos atores sociais, anseios de diversas classes e instituições políticas”. Acrescentou o Supremo Tribunal Federal que não caberia ao Poder Judiciário “rescrever leis de anistia”, não devendo o Supremo “avançar sobre a competência constitucional do Poder Legislativo”, tendo em vista que “a revisão da lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá de ser feita pelo Poder Legislativo e não pelo Poder Judiciário”. Observou, contudo, a necessidade de assegurar “a possibilidade de acesso aos documentos históricos, como forma de exercício fundamental à verdade, para que, atento às lições do passado, possa o Brasil prosseguir na construção madura do futuro democrático”. Concluiu afirmando que “é necessário não esquecermos, para que nunca mais as coisas voltem a ser como foram no passado”.
Com esta decisão, o Supremo Tribunal Federal denegou às vítimas o direito à justiça – ainda que tenha antecipado seu endosso ao direito à verdade. Não apenas denegou o direito à justiça, como também reescreveu a história brasileira mediante uma lente específica, ao atribuir legitimidade político-social à lei de anistia em nome de um acordo político e de uma reconciliação nacional.
Contudo, como realça Paulo Sergio Pinheiro, prevaleceu uma contrafação histórica, eis que “a lei de anistia não foi produto de acordo, pacto, negociação alguma, pois o projeto não correspondia àquele pelo qual a sociedade civil, o movimento de anistia, a OAB e a heroica oposição parlamentar haviam lutado. Houve o Dia Nacional de Repúdio ao projeto de Anistia do governo e manifestações e atos públicos contrários à lei – que, ao final, foi aprovada por 206 votos da Arena (partido da ditadura) contra 201 votos do MDB (oposição)” .
Em 24 de novembro de 2010, no caso Gomes Lund e outros versus Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil em virtude do desaparecimento de integrantes da guerrilha do Araguaia durante as operações militares ocorridas na década de 1970. O caso foi submetido à Corte pela Comissão Interamericana, ao reconhecer que o caso “representava uma
oportunidade importante para consolidar a jurisprudência interamericana sobre leis de anistia em relação aos desaparecimentos forçados e às execuções extrajudiciais, com a consequente obrigação dos Estados de assegurar o conhecimento da verdade, bem como de investigar, processar e punir graves violações de direitos humanos”.
Em sua histórica sentença, a Corte realçou que as disposições da lei de anistia de 1979 são manifestamente incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos humanos, nem para a identificação e punição dos responsáveis. Enfatizou a Corte que leis de anistia relativas a graves violações de direitos humanos são incompatíveis com o Direito Internacional e as obrigações jurídicas internacionais contraídas pelos Estados. Respaldou sua argumentação em vasta e sólida jurisprudência produzida por órgãos das Nações Unidas e do sistema interamericano, destacando também decisões judiciais emblemáticas, invalidando leis de anistia na Argentina, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Colômbia. A conclusão é uma só: as leis de anistia violam o dever internacional do Estado de investigar e punir graves violações a direitos humanos.
A respeito da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, entendeu a Corte que “afeta o dever internacional do Estado de investigar e punir graves violações a direitos humanos”, afrontando, ainda, o dever de harmonizar a ordem interna à luz dos parâmetros da Convenção Americana. Adicionou a Corte Interamericana: “Quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana, seus juízes, como parte do aparato do Estado, também estão submetidos a ela, o que lhes obriga a zelar para que os efeitos dos dispositivos da Convenção não se vejam mitigados pela aplicação de leis contrárias ao seu objeto, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos. (…) o poder Judiciário deve exercer uma espécie de “controle da convencionalidade das leis” entre as normas jurídicas internas que aplicam nos casos concretos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Nesta tarefa, o Poder Judiciário deve ter em conta não somente o tratado, mas também a interpretação que do mesmo tem feito a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana” . Concluiu a Corte que “não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades jurisdicionais do Estado brasileiro”, tendo em vista que o Supremo Tribunal Federal confirmou a validade da interpretação da lei de anistia sem considerar as obrigações internacionais do Brasil decorrentes do Direito Internacional, particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 1, 2, 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos.
No que se refere ao direito à verdade, até então, estava em vigor a  Lei n.11.111/05, ao prever que o acesso aos documentos públicos classificados “no mais alto grau de sigilo” poderia ser restringido por tempo indeterminado ou até permanecer em eterno segredo, em defesa da soberania nacional. Esta lei violava os princípios constitucionais da publicidade e da transparência democrática, negando às vítimas o direito à memória e às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas . Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos é fundamental respeitar e garantir o direito à verdade para o fim da impunidade e para a proteção dos direitos humanos. Acentua a Comissão:“Toda sociedad tiene el irrenunciable derecho de conocer la verdad de lo ocurrido, así como las razones y circunstancias en la que aberrantes delitos llegaram a cometerse, a fin de evitar que esses echos vuelvam a ocurrir em el futuro”. É, assim, dever do Estado assegurar o direito à verdade, em sua dupla dimensão – individual e coletiva – em prol do direito da vítima e de seus familiares (o que compreende o direito ao luto) e em prol do direito da sociedade à construção da memória e identidade coletivas.
Atente-se que, em 21 de dezembro de 2009, foi lançado o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, que, entre suas metas, ineditamente estabelece a criação de uma Comissão Nacional da Verdade, com o objetivo de resgatar as informações relativas ao período da repressão militar. Tal proposta foi causa de elevada tensão política entre o Ministério da Defesa (que acusa a proposta de revanchista) e a Secretaria Especial de Direitos Humanos e o Ministério da Justiça (que defendem a proposta em nome do direito à memória e à verdade), culminando inclusive com exoneração do general chefe do departamento do Exército, por ter se referido à “comissão da calúnia”.
À luz da experiência brasileira, até final de 2011, conclui-se que: a) não havia incorporação da jurisprudência da Corte Interamericana e dos parâmetros protetivos internacionais pelo Supremo Tribunal Federal ; b) havia uma tensão intragovernamental a respeito da política de Estado em prol da memória, verdade e justiça; e c) havia a afronta aos direitos à verdade e à justiça.
Finalmente, em 18 de novembro de 2011, foram adotadas duas leis de profunda relevância para a justiça transicional brasileira: a) a Lei n.12.527, que regula o acesso à informação; e b) a Lei n. 12.528, que cria a Comissão Nacional da Verdade. É evidente o elevado impacto da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (no caso Gomes Lund versusBrasil) para o advento destes dois avanços democráticos.
A Lei n.12.527, que regula o acesso à informação, limita o prazo de sigilo de documentos classificados como “ultrasecretos”. Inova ao estabelecer que tais documentos sejam mantidos em segredo até 25 anos, renováveis por, no máximo, mais 25 anos. A proposta sofreu forte resistência de parlamentares que defendem o sigilo eterno destes documentos.
Com efeito, a questão central atinha-se aos documentos considerados “ultrasecretos” e ao poder da autoridade pública de decidir o que é “ultrasecreto”, impondo tal classificação, com a prerrogativa de prorrogar e estender o sigilo de informações eternamente. O ato de classificar permite à autoridade pública atribuir o grau de sigilo a documento, culminando, na prática, com a delegação ao Executivo do poder de definir o núcleo essencial do direito constitucional à informação. O risco era que tal sistemática fomentasse a discricionariedade e o arbítrio do Estado no ímpeto abusivo de classificar como “ultrasecretos” documentos públicos, privando-os do acesso à
sociedade, sobretudo quando referem-se a graves violações a direitos humanos.
À luz dos parâmetros constitucionais e internacionais, ao direito à informação corresponde o dever do Estado de prestá-las de forma ampla e efetiva, sob pena de responsabilidade. No regime democrático a regra é assegurar a disponibilidade das informações com base no princípio da máxima divulgação das informações; a exceção é o sigilo e o segredo. As limitações ao direito de acesso à informação devem se mostrar necessárias em uma sociedade democrática para satisfazer um interesse público imperativo.
No atual contexto brasileiro, o interesse público imperativo não é o sigilo eterno de documentos públicos, mas, ao contrário, o amplo e livre acesso aos arquivos. O direito ao acesso à informação é condição para o exercício de demais direitos humanos, como o direito à verdade e o direito à justiça, sobretudo em casos de graves violações de direitos humanos perpetradas em regimes autoritários do passado.
Não há como conciliar o direito à verdade com o sigilo eterno. A luta pelo dever de lembrar merece prevalecer em detrimento daqueles que insistem em esquecer. Não há como conciliar os princípios constitucionais da publicidade e da transparência com o sigilo eterno. Para Norberto Bobbio, a opacidade do poder é a negação da democracia, que é idealmente o governo do poder visível ou o governo cujos atos se desenvolvem em público, sob o controle democrático da opinião pública.
O sigilo eterno afrontava o direito à informação, o direito à verdade, bem como os princípios da publicidade e da transparência essenciais à consolidação do Estado Democrático de Direito.
Na mesma data de 18 de novembro de 2011, foi adotada a Lei n. 12.528, que cria a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de elucidar as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 a 1988. Caberá à Comissão promover o esclarecimento circunstanciado de casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, identificando e tornando públicos as estruturas, os locais e as instituições envolvidas.
A proposta contou com o apoio do Ministério da Defesa, tendo o aval dos comandantes das três Forças. Em julho de 2011, o Ministério da Justiça já havia garantido a um grupo de 12 familiares de mortos e desaparecidos políticos o acesso irrestrito a todos os documentos do Arquivo Nacional. A esta conjuntura nacional adicione-se a histórica condenação do Brasil pela Corte Interamericana no caso Gomes Lund. Reitere-se: para a Corte, as disposições da lei de anistia de 1979 são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação de graves violações de direitos humanos, nem para a identificação e punição dos responsáveis.
Neste contexto, a instituição da Comissão da Verdade simboliza um extraordinário avanço na experiência brasileira, ao consagrar o direito à memória e à verdade, permitindo a reconstrução histórica de graves casos de violações de direitos humanos
Desafios e perspectivas da justiça de transição no contexto brasileiro
A justiça de transição lança o delicado desafio de como romper com o passado autoritário e viabilizar o ritual de passagem à ordem democrática.
Nas lições de Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling , a justiça de transição compreende: o direito à verdade; o direito à justiça; o direito à reparação; e reformas institucionais .
Como evidenciado por este artigo, a jurisprudência do sistema interamericano e do sistema global de proteção reconhece que leis de anistia violam obrigações jurídicas internacionais no campo dos direitos humanos, adotando como perspectiva a proteção aos direitos das vítimas (“victim centric approach”).
Estudos demonstram que a justiça de transição tem sido capaz de fortalecer o Estado de Direito, a democracia e o regime de direitos humanos, não representando qualquer ameaça ou instabilidade democrática, tendo, ainda, um valor pedagógico para as futuras gerações. Como atentam Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling: “O julgamento de violações de direitos humanos pode também contribuir para reforçar o Estado de Direito, como ocorreu na Argentina. (…) os cidadãos comuns passam a perceber o sistema legal como mais viável e legítimo se a lei é capaz de alcançar os mais poderosos antigos líderes do país, responsabilizando-os pelas violações de direitos humanos do passado. O mais relevante componente do Estado de Direito é a ideia de que ninguém está acima da lei. Deste modo, é difícil construir um Estado de Direito ignorando graves violações a direitos civis e políticos e fracassando ao responsabilizar agentes governamentais do passado e do presente. (…) Os mecanismos de justiça de transição não são apenas produto de idealistas que não compreendem a realidade política, mas instrumentos capazes de transformar a dinâmica de poder dos atores sociais” .
Constata-se na experiência de transição brasileira um processo aberto e incompleto, na medida em que tão somente foi contemplado o direito à reparação, com o pagamento de indenização aos familiares dos desaparecidos políticos, mediante a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos pela Lei n. 9.140 de 1995 e da Comissão de Anistia pela Lei n.10.559 de 2002. Diversamente dos demais países da região, como conclui Anthony Pereira, “a justiça de transição no Brasil foi mínima. Nenhuma Comissão da Verdade até o momento foi instalada, nenhum dirigente do regime militar foi levado a julgamento e não houve reformas significativas nas Forças Armadas ou no poder Judiciário” .  Emergencial é assegurar o direito à verdade e o direito à justiça, viabilizando reformas institucionais. Na experiência argentina, os direitos à justiça e à verdade têm sido plenamente assegurados. 
Ao endossar a relevante jurisprudência internacional sobre a matéria, a inédita decisão da Corte Interamericana no caso Gomes Lund versus Brasil irradia extraordinário impacto na experiência brasileira. Traduz a força catalizadora de avançar na garantia dos direitos à verdade e à justiça na experiência brasileira. De um lado, contribuirá para a instalação da Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de resgatar as informações relativas ao período da repressão militar, em defesa do direito à memória coletiva. Por outro lado, garantirá o direito à justiça, combatendo a impunidade de graves violações de direitos humanos, que alimenta um continuísmo autoritário na arena democrática.
Sob a ótica republicana e democrática, considerando ainda as obrigações internacionais do Estado brasileiro em matéria de direitos humanos, implementar os mecanismos da justiça de transição é condição para romper com uma injustiça permanente e continuada, que compromete e debilita a construção democrática. A absoluta proibição da tortura, o direito à verdade e o direito à justiça estão consagrados nos tratados internacionais, impondo ao Estado brasileiro o dever de investigar, processar, punir e reparar graves violações a direitos humanos, especialmente em se tratando de crime internacional. Leis de anistia não podem autorizar a manifesta violação a jus cogens, como a absoluta proibição da tortura, no plano internacional. Assegurar os direitos à verdade e à justiça é condição essencial para fortalecer o Estado de Direito, a democracia e o regime de direitos humanos no Brasil.
Marcados com: • 
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Aos amigos da PFF e outros órgãos de Segurança Pública