Matéria de capa da Folha de hoje (25/7/11):
“Lei antidrogas aumenta lotação carcerária
Nova legislação aumentou prisões no país, mas deveria resultar em penas comunitárias, afirmam especialistas
(...)
Às vésperas de completar cinco anos, no próximo mês, a lei provocou o efeito contrário ao previsto: é a responsável pela superlotação de presídios, dizem especialistas.
A ideia original era que usuários fossem encaminhados para prestar serviços comunitários ou para assistir palestras sobre drogas - a internação compulsória é vetada no Brasil.
Entre 2006 e 2010, a população carcerária cresceu 37%, segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional), do Ministério da Justiça. O índice equivale a mais de dez vezes a proporção de aumento da população no período (2,5%).
O número dos presos por tráfico no país saltou de 39.700 para 86.591 entre 2006 e 2010 - um aumento de 118%, segundo o Depen.
Em todo o país, havia no ano passado 496.251 presos.
O tráfico aumentou nesses cinco anos, mas a explosão de prisões é resultado da mudança da lei, segundo Luciana Boiteux, professora de direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Há duas razões para explicar o aumento, segundo ela: a pena mínima para traficantes cresceu de três para cinco anos e os juízes estão condenando usuários como traficantes. ‘A lei deixou um poder muito grande na mão de policiais e juízes, e eles têm sido muito conservadores’”
Podemos aprender várias coisas com essa matéria, mas principalmente como formular nossas opiniões a respeito de políticas de segurança pública:
Primeiro, quem está sendo preso são os traficantes e não os usuários. Não há como prender o usuário porque a lei não permite. Se algum magistrado condenasse um usuário a ser presto ele estaria cometendo um delito: abuso de autoridade.
A lei não diz a partir de quantas gramas de cada droga alguém deixa de ser usuário e passa a ser traficante. Isso fica, inicialmente, a critério de quem efetua a prisão (polícia) e, posteriormente, do magistrado que julgará o caso. Mas esse não é um problema dessa nova lei, ao contrário do que a pessoa entrevistada deu a entender. A lei anterior era idêntica nesse ponto. Logo, não há como atribuir o aumento do número de prisões à nova lei não estabelecer limites mínimos para que a pessoa seja punida como traficante. Reparem abaixo que nem a lei nova nem a lei antiga falam de quantidades partir da qual alguém passa a ser traficante:
Lei antiga (6.368/76): "Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar
Pena - Reclusão, de 3 a 15 anos, e pagamento de 50 a 360 dias-multa"
Lei nova (11.343/06): "Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 a 15 anos e pagamento de 500 a 1.500 dias-multa"
Existe uma outra possibilidade de a lei ser culpada: a lei não aumentou a pena máxima, mas aumentou a pena mínima, certo? Então será se é possível que esse aumento tenha gerado o aumentou da população carcerária em 37%?
Vamos fazer as contas para ver se a nova lei pode ser culpada: a média da pena na lei antiga eram 9 anos (média entre 3 e 15 anos). A média da lei nova é 10 anos (média entre 5 e 15 anos). Alguns traficantes receberão penas menores e outros maiores do que a média, mas, na média, recebiam 9 anos pela lei antiga e 10 anos pela lei nova (é o que em estatística nós chamamos de distribuição normal). Logo, se olharmos a média nos primeiros 5 anos, ela não modificaria porque a diferença vai aparecer apenas entre os anos 9 e 10 depois da implantação da lei, quando quem deveria sair com 9 anos agora vai sair apenas depois de cumprir 10 anos. Ou seja, será apenas em 2016 que o aumento da pena mínima para traficantes vai provocar um inchaço na penitenciárias. E esse inchaço deverá ficar entre 7% e 11%, e não em 37%. Logo, novamente, a nova lei não pode ter sido culpada do aumento atual.
Bem, se não dá para dizer que o aumento foi provocado pela lei, o que pode ter provocado? Existem diversas explicações possíveis, mas duas justificam porque mais pessoas estejam sendo condenadas por tráfico:
Primeiro, a polícia está mais eficiente em efetuar prisões de traficantes e o judiciário em condenar. Embora possa parecer estranho para algumas pessoas, a polícia tem, de fato, prendido mais em vários tipos de crimes. O tráfico é uma área especialmente visada porque é o que alguns cientistas sociais chamam de crime de entrada, ou seja, as drogas, segundo esses cientistas sociais, levam as pessoas a cometerem outros crimes para financiarem seus vícios ou conseguirem o dinheiro para virarem traficante. Da próxima vez que estiver lendo o jornal, repare quantas vezes você verá que quem roubou ou cometeu o latrocínio também tinha conexões com drogas.
Segundo, embora a nova lei seja idêntica à antiga lei em não estabelecer quantias a partir da qual a pessoa passa a ser traficante, quem instrumentaliza a lei (polícia, Ministério Público e Judiciário) pode, sim, ter mudado sua forma de interpretá-la e estar sendo mais rígido tanto na interpretação da lei quanto do fato que está gerando a aplicação da lei. Se isso é consequência de maior conservadorismo (como dito na matéria) ou maior interesse em proteger a sociedade, ou qualquer outra razão, fica a critério de cada leitor decidir. Mas reparem que um maior rigor na interpretação da lei não significa que a nova lei seja quem causou o aumento no rigor de sua interpretação. Ela simplesmente não diz como quer ser interpretada.
PS: Apenas para lembrar, ao contrário do que diz a matéria, existe internação compulsória no Brasil, sim. A regra é simples: se o crime é apenado com pena de reclusão (ou seja, é um delito grave), e quem o cometeu for louco, ele deverá ser internado. Se o delito não é apenado com reclusão, ou seja, se é um delito mais brando, a pessoa que o cometeu deverá ser submetida a tratamento ambulatorial, se for louca. O que a matéria quis dizer é que não há internação compulsória no caso do usuário de drogas, porque a nova lei passou a considerar esse delito um delito menos grave.
“Lei antidrogas aumenta lotação carcerária
Nova legislação aumentou prisões no país, mas deveria resultar em penas comunitárias, afirmam especialistas
(...)
Às vésperas de completar cinco anos, no próximo mês, a lei provocou o efeito contrário ao previsto: é a responsável pela superlotação de presídios, dizem especialistas.
A ideia original era que usuários fossem encaminhados para prestar serviços comunitários ou para assistir palestras sobre drogas - a internação compulsória é vetada no Brasil.
Entre 2006 e 2010, a população carcerária cresceu 37%, segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional), do Ministério da Justiça. O índice equivale a mais de dez vezes a proporção de aumento da população no período (2,5%).
O número dos presos por tráfico no país saltou de 39.700 para 86.591 entre 2006 e 2010 - um aumento de 118%, segundo o Depen.
Em todo o país, havia no ano passado 496.251 presos.
O tráfico aumentou nesses cinco anos, mas a explosão de prisões é resultado da mudança da lei, segundo Luciana Boiteux, professora de direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Há duas razões para explicar o aumento, segundo ela: a pena mínima para traficantes cresceu de três para cinco anos e os juízes estão condenando usuários como traficantes. ‘A lei deixou um poder muito grande na mão de policiais e juízes, e eles têm sido muito conservadores’”
Podemos aprender várias coisas com essa matéria, mas principalmente como formular nossas opiniões a respeito de políticas de segurança pública:
Primeiro, quem está sendo preso são os traficantes e não os usuários. Não há como prender o usuário porque a lei não permite. Se algum magistrado condenasse um usuário a ser presto ele estaria cometendo um delito: abuso de autoridade.
A lei não diz a partir de quantas gramas de cada droga alguém deixa de ser usuário e passa a ser traficante. Isso fica, inicialmente, a critério de quem efetua a prisão (polícia) e, posteriormente, do magistrado que julgará o caso. Mas esse não é um problema dessa nova lei, ao contrário do que a pessoa entrevistada deu a entender. A lei anterior era idêntica nesse ponto. Logo, não há como atribuir o aumento do número de prisões à nova lei não estabelecer limites mínimos para que a pessoa seja punida como traficante. Reparem abaixo que nem a lei nova nem a lei antiga falam de quantidades partir da qual alguém passa a ser traficante:
Lei antiga (6.368/76): "Art. 12. Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar
Pena - Reclusão, de 3 a 15 anos, e pagamento de 50 a 360 dias-multa"
Lei nova (11.343/06): "Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 a 15 anos e pagamento de 500 a 1.500 dias-multa"
Existe uma outra possibilidade de a lei ser culpada: a lei não aumentou a pena máxima, mas aumentou a pena mínima, certo? Então será se é possível que esse aumento tenha gerado o aumentou da população carcerária em 37%?
Vamos fazer as contas para ver se a nova lei pode ser culpada: a média da pena na lei antiga eram 9 anos (média entre 3 e 15 anos). A média da lei nova é 10 anos (média entre 5 e 15 anos). Alguns traficantes receberão penas menores e outros maiores do que a média, mas, na média, recebiam 9 anos pela lei antiga e 10 anos pela lei nova (é o que em estatística nós chamamos de distribuição normal). Logo, se olharmos a média nos primeiros 5 anos, ela não modificaria porque a diferença vai aparecer apenas entre os anos 9 e 10 depois da implantação da lei, quando quem deveria sair com 9 anos agora vai sair apenas depois de cumprir 10 anos. Ou seja, será apenas em 2016 que o aumento da pena mínima para traficantes vai provocar um inchaço na penitenciárias. E esse inchaço deverá ficar entre 7% e 11%, e não em 37%. Logo, novamente, a nova lei não pode ter sido culpada do aumento atual.
Bem, se não dá para dizer que o aumento foi provocado pela lei, o que pode ter provocado? Existem diversas explicações possíveis, mas duas justificam porque mais pessoas estejam sendo condenadas por tráfico:
Primeiro, a polícia está mais eficiente em efetuar prisões de traficantes e o judiciário em condenar. Embora possa parecer estranho para algumas pessoas, a polícia tem, de fato, prendido mais em vários tipos de crimes. O tráfico é uma área especialmente visada porque é o que alguns cientistas sociais chamam de crime de entrada, ou seja, as drogas, segundo esses cientistas sociais, levam as pessoas a cometerem outros crimes para financiarem seus vícios ou conseguirem o dinheiro para virarem traficante. Da próxima vez que estiver lendo o jornal, repare quantas vezes você verá que quem roubou ou cometeu o latrocínio também tinha conexões com drogas.
Segundo, embora a nova lei seja idêntica à antiga lei em não estabelecer quantias a partir da qual a pessoa passa a ser traficante, quem instrumentaliza a lei (polícia, Ministério Público e Judiciário) pode, sim, ter mudado sua forma de interpretá-la e estar sendo mais rígido tanto na interpretação da lei quanto do fato que está gerando a aplicação da lei. Se isso é consequência de maior conservadorismo (como dito na matéria) ou maior interesse em proteger a sociedade, ou qualquer outra razão, fica a critério de cada leitor decidir. Mas reparem que um maior rigor na interpretação da lei não significa que a nova lei seja quem causou o aumento no rigor de sua interpretação. Ela simplesmente não diz como quer ser interpretada.
PS: Apenas para lembrar, ao contrário do que diz a matéria, existe internação compulsória no Brasil, sim. A regra é simples: se o crime é apenado com pena de reclusão (ou seja, é um delito grave), e quem o cometeu for louco, ele deverá ser internado. Se o delito não é apenado com reclusão, ou seja, se é um delito mais brando, a pessoa que o cometeu deverá ser submetida a tratamento ambulatorial, se for louca. O que a matéria quis dizer é que não há internação compulsória no caso do usuário de drogas, porque a nova lei passou a considerar esse delito um delito menos grave.
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